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O Tabuleiro

Pawlo Cidade

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AMOR E ÓDIO*

Hoje eu quero trazer para vocês um pequeno trecho de um livro inédito de minha autoria chamado “O rio, a menina e a lenda”. Neste trecho, a pequena Luara, fala sobre o que pensa de amor e ódio. Ela começa assim:

“Amor e ódio são dois sentimentos que a gente aprende desde cedo. O amor está ligado ao querer bem, ao gostar de algo ou de alguém; o ódio, tem o mesmo sentido. Só que ao invés de gostar, a gente tem vontade de sumir com algo; tem vontade de destruir, de acabar, de jogar fora, de quebrar, de enterrar na lama mais funda, de afogar no rio mais escuro. Tem o desejo de bater tão forte até esfarelar os cocos mais graves.

Ódio é um sentimento que meu pai dizia que os Juma não semeavam, nem tampouco cultivavam. Amor e ódio são como os rios Negro e Solimões, muito diferentes. O primeiro é o mais extenso rio de água negra do mundo, como a noite sem luar e sem estrelas; o segundo tem as águas claras, semelhantes a seus afluentes da margem direita, como os rios Javari, Jutaí, Juruá e Purus, um dos mais belos rios da grande floresta.

Eu sequer tive dúvidas de qual sentimento cultivar quando peguei Januara nos braços. Eu chorava, soluçava, esperneava, tremia. Tudo ao mesmo tempo. O corpinho peludo, ainda quente, deu alguns suspiros antes de partir.

Meu pai me disse certa vez que bichos não têm tem espírito, mas, possuem alma.

Como assim, meu pai? eu perguntei.

E ele me explicou:

- Luara, - ele segurou minhas duas mãos como ele costumava fazer quando queria falar alguma coisa importante - os bichos têm alma como nós. É por isso que eles se comunicam tanto conosco. Mas a alma deles não é como a nossa alma, entende? Quando eles morrem, a alma deles morre junto.

Ele trouxe uma folha de coccoloba para cobrir Januara. A folha dava o dobro de tamanho do meu pai. Era tão grande que cabia eu e minhas irmãs sobre ela. Com uma faca, meu pai cortou a folha ao meio. Em seguida, embrulhou cuidadosamente o cachorro-vinagre e o levou para o Vale das Flores, uma região que os ribeirinhos e indígenas batizaram de Ibotirama. Nós ajudamos a cavar e a enterrar Januara. Os animais que os Juma conseguiam cativar eram enterrados com respeito. Seus corpos não eram jogados nos rios ou abandonados na floresta. Eram sepultados, como nossos antepassados e parentes.

Ibotirama ficava numa campina densamente florida. Sua extensão cansava a vista e o seu aroma era sentido a léguas de distância. As flores desabrochavam no período da seca e permaneciam até meado das cheias. Era o único lugar daquela região que as águas não cobriam a vegetação. Pássaros, como os colibris, e insetos como abelhas, borboletas e besouros, se banqueteavam no pólen daquelas incontáveis flores coloridas, cheirosas e bonitas. 

Ficamos em silêncio por alguns minutos. Eu peguei uma flor afunilada, levemente rosa, de um arbusto bonito e depositei sobre o túmulo de Januara. Vi que os olhos do meu pai se encheram de lágrimas. O cachorro-vinagre era parte da família.

 

 

* Este texto é parte integrante do livro inédito “O rio, a menina e a lenda”, de minha autoria.

 

Por: Redação O Tabuleiro
Dia 27/11/2020 12h00

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