Os círculos políticos de Brasília estão agitados e apreensivos. A divulgação, pelo Presidente da República, de um manifesto virulento – assinado por autor desconhecido, depois assumido por inexpressivo correligionário – foi inesperada e impactante. São impropérios pesados contra os poderes da União, afirmando que o país é ingovernável. Acusações raivosas que abrem a cortina de um cenário que talvez seja o último ato da opera bufa que este governo representa. A metralhadora giratória do escriba radical (certamente municiada com os 5000 projéteis que a Lei da Bala propõe para o cidadão) não poupa ninguém. Atinge a todos, como num fulminante ataque terrorista. O miliciano do texto extraoficial, mas abrigado nas redes de Vossa Excelência, desrespeita e debocha da seriedade do Judiciário; duvida da honestidade e dos propósitos do Congresso; insulta a classe política e o empresariado; e diz que a Presidência não governa e não serve para nada. Prato cheio para os especuladores pisotearem a economia afundada e lucrarem com a drástica situação do país, que ele (o jagunço do whatsapp) chama de “moribundo-Brasil”.
Não é o caso de ser purista e fazer a apologia hipócrita do bom funcionamento da Justiça e do Legislativo. Há muita falcatrua para ser desfeita e extirpada. Nem todo mundo é santo e existe muito rabo preso em comprometimentos espúrios. Mas a gravidade do momento requer ponderação e discernimento. Um presidente, realmente preocupado com a situação nacional, não pode legitimar (e louvar) um panfleto tão demolidor e inconsequente. A quem serve o capanga-redator? Única resposta evidente: à desordem, ao caos generalizado. Por que esticar a corda rota e provocar mais desequilíbrio na instabilidade das instituições? É a estratégia desesperada do artilheiro cercado: detonar uma granada, para tentar a fuga na fumaça da explosão.
A reação de repulsa foi imediata. Os analistas políticos (também alvo do extremista das palavras) apontam o motivo principal para a torpe agressão aos valores republicanos e ao funcionamento da democracia: o presidente está acuado. Seu governo é um fracasso. Suas estratégias são equivocadas e sem objetividade. Suas medidas são absurdas e os resultados são pífios e prejudiciais. Não tem prestígio político, perdeu confiança e apoio da área econômica, não é bem visto nas altas Cortes e não tem força para mobilizar as Forças Armadas em sua defesa. É vertiginosa a queda de sua aceitação junto ao eleitorado. Sua imagem de salvador impoluto, contra a corrupção e pela restauração moral dos bons costumes, desmoronou rapidamente. A face oculta de seu currículo (agora exposta com mais evidência) espanta e afasta os bem-intencionados, que acreditaram em seu discurso cheio de promessas e patriotadas.
Após a sistemática desvalorização e desmonte da Educação, no atual governo, reapareceu (com destaque) seu acidentado perfil como estudante militar. Nada elogiável. Não conseguiu chegar ao nível superior de preparação dos oficiais. Não teve formação para funções de alto comando. Fez só o curso básico do oficialato, sem estar qualificado para ser promovido a major, tenente-coronel, coronel e chegar a general. Foi barrado na Escola de Comando e Estado Maior do Exército (Eceme) por não ter “Embasamento intelectual e cultural, necessários ao futuro oficial do estado maior e assessor de alto nível da força” faltando “conhecimento interdisciplinar de História, Geografia, Geopolítica e Estratégia, necessário à continuidade da instituição de caráter permanente ‘Exército Brasileiro’” (documento citado por Clóvis Rossi, Folha de São Paulo, 17/05/2019).
Mais grave: ressurgiu na mídia matéria da revista “Veja” (15/02/2007) sobre os 15 dias de prisão do capitão, por indisciplina e deslealdade, quando servia nos quartéis. O inquérito que respondeu na Justiça Militar o levou a ser reformado por ato de indisciplina. Ou seja, falta ao presidente vivência intelectual universitária para discutir a Educação em nível acadêmico. E seu comportamento transgressor o desautoriza a condenar como baderna as manifestações estudantis. Pior: uma das duas acusações a que foi submetido (a primeira foi por deslealdade e incitamento à rebelião) é seu envolvimento no plano “Beco sem saída”, que pretendia causar algumas explosões, em unidades militares do Rio, para desestabilizar o comando do então ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves. O assunto é revelado em matéria da revista “Veja” (25/10/1987). Dias depois (01/11/1987), “Veja” publica croqui, desenhado pelo capitão, apontando os locais em que as bombas seriam colocadas. Exames grafotécnicos o incriminam. A revista (edição de 15/05/2017) afirma que, em sessão secreta de 25/01/1988, o Conselho Militar encarregado do caso “decide por unanimidade” considerar o oficial culpado. E cita trecho que justifica a sentença: “...mentiu durante todo o processo, quando negou a autoria dos esboços publicados na revista “Veja”, como comprovam os laudos periciais do Instituto de Criminalística da Polícia Federal e do 1º Batalhão de Polícia do Exército”.
Essa narrativa é necessária para entender que as Forças Armadas, dificilmente, acompanharão uma aventura golpista do capitão. Os militares são devotados seguidores da hierarquia e da disciplina – obedecem à Presidência como um exercício do dever militar. Protegem a corporação e sua história como coisa interna e reservada, mas não perdem as perspectivas mais abrangentes da conjuntura nacional. Vivemos um contexto muito diferente dos anos 60/70, quando a doutrina da Guerra Fria criava a moldura adequada para os regimes de força. Sabem que, atualmente, o estado democrático de direito é fundamental para a economia liberal globalizada que defendem. Por isso, agora, não é sensato demonizar as Forças Armadas com uma visão revanchista e preconceituosa. Apesar das práticas repressivas do passado recente (e das discordâncias que se possa ter do seu enquadramento ideológico), hoje, os militares instalados no planalto têm outros planos e objetivos. Atuam como um polo de contenção e ponderação. Não formam um contingente disposto a quarteladas inconsequentes. É de supor que estão ali muito mais para segurar o ex-capitão, impulsivo e desastrado, do que para alimentar seus desvarios e desmandos. Por isso, são hostilizados pela corte palaciana das eminências pardas que cercam o presidente.
Mas a situação piora. Fica difícil para o capitão manter o controle. Sua gestão é confusa e insegura, produzindo consequências lamentáveis. No trôpego desempenho de seu mandato, o chefe da nação não sabe como enfrentar o vendaval que está se armando. Investigações do Ministério Público sobre milícias no Rio de Janeiro estão cada vez mais perto de sua família. O capitão tem reagido como fera ferida e as perigosas labaredas que dispara complicam o delicado jogo das negociações políticas. Os aliados começam a sair de fininho. Não dá para prever o que vai acontecer – é preocupante.
O chefe de governo está só. O paraquedas principal embolou depois do salto – o de segurança ainda não abriu e a queda livre se acelera. Ante o desfecho que prenuncia a derrota do projeto pessoal de poder do presidente, o enredo parece indicar uma grande fogueira final – como o incêndio que Nero ateou em Roma. Afinal, o capitão sempre adotou o estilo de despotismo característico da Inquisição, em que se usa o medo e o terror como meios de controle - e a vingança leva à punição com o fogo.